Crônicas
A senhora e o semáforo
Eu não sei de onde você é. De Pernambuco, Amazonas ou Santa Catarina, não importa, vai me corrigir de qualquer forma. Mais que uma discussão de “biscoito” ou “bolacha”, semáforo, farol ou sinal, cabendo ainda outras tonalidades ao nosso dicionário.
O importante é ler minha nota de honra ao mérito.
Sim, apesar de não ter um cargo que me permita entregar medalhas (algo que cabe ao Presidente e as professoras do Maternal II), tenho convicção que o direito a congratular uma senhora é meu, dada as circunstâncias.
Estava inocentemente dirigindo meu carro em uma avenida bastante movimentada da cidade, sabe, daquelas que devemos evitar na hora do rush, mas que são as mais retas e que chegam mais diretamente ao destino.
O comum é estar irritadíssimo, atrasado e certamente pegando a maior quantidade de semáforos (farol, sinal, sinaleira etc) durante o percurso. A cada vinte metros, um sinal se fechava, sendo uma piada antiga dos controladores de trânsito, em suas cabines acolchoadas, apertando os botões de tortura. Mais certo do que pegar trinta e um semáforos vermelhos em trinta possíveis, é ainda se deparar com os casos mais delirantes enquanto aguarda a troca pela cor verde.
Durante dois minutos – infelizmente, só dois minutos, desta vez -, o amigo de trânsito ficou fechado e me permitiu olhar um pouco para os lados. Naquele furdunço de carros de todas as classes sociais, camelôs e pedintes, o que mais me interessou foi alguém que estava na calçada.
Eu tenho uma clara predileção por senhoras, isso é fato, mas senhorinhas com cara e corpo de senhorinhas têm um destaque ainda maior no meu coração. Com semblante inocente, fazem strip-tease na faixa de pedestre achando que é o banheiro de casa.
No caso, a que avisto não estava com nenhuma debilidade destas, apresentando-se no comércio local ao lado para um outro show. Vestido de oncinha, cabelos tingidos de acaju presos, óculos que não tem o grau mínimo para se enxergar duas mãos de distância, chinelinhas havaianas, dentaduras em casa por mera vontade (não iria comer um sanduíche, então por que trazer um par de dentes para a rua, não é mesmo?).
O sinal fechado, os carros fazendo aquele movimento de meia-embreagem, em que parecem demonstrar o quanto seus donos estão ansiosos, e eu ali, admirando minha heroína de um metro e meio passear.
A senhorinha, corcunda, obviamente, tropeçava a cada falha do pavimento (Senhor Prefeito, tenha dó dos nossos pedestres!). Ela pegava cada transeunte e começava a falar sobre suas semelhanças físicas com parentes seus. Cumprimentando um por um com imensa caridade, ninguém notava o plano astuto que se passava pela sua cabeça.
Nas proximidades, um vaso com uma bela suculenta se apresentava na frente de uma padaria. Conversa vai, conversa vem, a senhorinha se aproximava do seu alvo sem ser notada. Como uma tartaruga solta, sem presa de fugir, mas sempre fugindo, a senhorinha se aproximava do vaso. Garbosa, cheia de vida, com um tom arroxeado diferente – até eu gostaria de roubar um pedacinho -, fazia salivar a boca da senhorinha, mostrando que a velhinha tinha olfato ou audição para enxergar sua presa.
Dotada de uma faca de cortar manteiga – tanto utensílio mais afiado, mas não vou julgar os métodos de uma profissional – ela se detém de costas para suculenta. O padeiro a chama para comprar o pão do lanchinho da noite, como sempre faz, mas a senhorinha não vai comer pão hoje. Com um gesto rápido, corta uma estaca da plantinha sem que a multidão perceba, somente eu e as câmeras da rua. Voltando para casa, continua trupicando como antes, sorrindo para a plateia que nada havia visto.
Uma quadra mais a frente, e a senhorinha abre o portão e não é mais vista.
O semáforo abre e meu carro custa a perceber que minha heroína já saiu de cena. Como será que a senhorinha vai guardar seu prêmio? Num vaso de cerâmica ou mesmo em um pote de goiabada, acompanho mais alguns semáforos fechados curioso.
O dilema da liberdade do canário
Meu pai sempre gostou muito de pássaros.
Era sempre uma festa, quando ele criança, com sua baladeira e suas arapucas de galhos corria pelos limites do território, como me falava. Garrincha, passo-preto, alma-de-gato, pardal, pomba, rolinha e por aí vai eram os indivíduos escolhidos para sua diversão e complemento a alimentação. Criança com um espírito tão puro, lá nos anos 1940, 1950, na fazenda velha, onde não se tinha televisão e o rádio estava disponível somente no final da tarde, quando se tinha um pouco de energia chegando.
Alma de menino, comandada por adultos sem escrúpulos, mandando fazer cercas, cavar valas, plantar feijão – que audácia -, e quando soltos, compadecidos por pequenas aves bicando milho no seu entorno. Veja a gravidade desta ausência de comando! Pobres mirins sem estudo tendo somente o dever cívico de atirar pedras em alvos móveis – Clint Eastwood foi certamente uma destas crianças!
Hoje, infelizmente, venho a público com um peso moral nas costas. Sim, um peso da minha educação escolar, em que tiazinhas e tiozinhos explicam desde cedo que os animais são nossos amigos, que não devemos bater, envenenar ou castigar. Desta sociedade vil é que se desdobram adoradores de cenouras e hipsters, com seus tênizinhos de algodão, camisas de lenhador e uma grande afeição por bistrôs caros, pessoas sem nenhum compromisso com a Pátria e gosto estranho por músicas políticas e natureza.
Embora não vegano, eu fui uma destas crianças doutrinadas pela cultura imoral da proteção aos indefesos e a cidadania! Caminhando pelas ruas da cidade, fico incredulamente indignado com a quantidade de gaiolas nos pet shops. Amoral, imoral, antiético, é o que enxerga o coração de um pupilo das boas práticas do Green Peace que não canta mais “Atirei o pau no gato...” para ninguém.
Num destes dias qualquer de sol, entro em uma loja cheia de pássaros enjaulados. Com raiva, abordo o dono da dita loja “pet-friendly” que logo me desarma a alma e fala que são todos acostumados, dóceis e que não sabem viver voando, podendo até ser mortos por gatos traíras ou poodles idosos. Eu me convenci que o dono de um comércio como este tem um pouco do meu pai no seu coração, não conseguindo mais ter ira. Uma alma juvenil não convertida pelo capitalismo ambiental! Claramente eu estava errado, mas ainda ressabiado, dada minha formação – é difícil se abster dos nossos valores!
Os canários, lindos e dourados, ficavam pulando de pauzinho a pauzinho dentro das grades, comendo migalhas de girassol e milho, e balbuciando canções incríveis de Sinatra, Ray Charles e Waldik Soriano. Era emocionante o quanto cativavam com suas vozes roucas e doloridas, deixando atônitos a todos que por ali passavam.
Guardando aquela linda imagem comigo, continuei meu caminho para casa. Meio desconcertado, no entanto, recebo novamente mais uma cena teatral. A grama acabara de ser cortada, espalhando sementes por todo o piso de pedra portuguesa e pela relva recém dilacerada e dali vejo um mar de avezinhas amarelas chegando, famintas por algo que estranhamente estava disponível nos pêndulos verdes quando ainda estavam de pé – assim como os humanos, as aves preferem comida já processada.
Os canários não conseguem só comer, eles precisam avisar a vizinhança que estão tendo uma refeição. Em um cenário pronto para qualquer praticante de arco e flecha, as indolentes “sardinha” cantam como se não houvesse amanhã. Se os bichinhos da loja “amiga dos animais” cantavam boleros antigos, como se a vida estivesse em um copo meio vazio de conhaque de alcatrão, bonitos, mas tristes, os da praça eram festivos, cantando marchinhas de carnaval e certamente um funk contemporâneo em canarês.
A praça seguiu tomada por aquela onda amarela por uns bons minutos, quando de repente voaram para a fiação do poste mais próximo e dali partiram para azucrinar mais longe qualquer um que goste de música eletrônica. Não se faz mais canários como antigamente.
Saí da praça com uma nova dicotomia promovida pelo paradoxo que é viver numa sociedade Pós-Moderna. Os valores mudaram e ao mesmo tempo somos cobrados por agentes dos dois extremos. Como todas as escolhas da nossa vida, me deparei com a cruz e a espada: amar o prisioneiro a ponto de permitir que ele fuja e cante músicas de qualidade duvidosa, ou amar a mim mesmo e escutar Beethoven e Mozart em minha janela?
Acupuntura do Abaporu
Não é todo dia que você tem uma dor de cabeça.
Não estou falando de problemas no trabalho ou com os filhos, mas uma dor física que preenche sua alma, mesmo não acreditando em Deus, Alá e suas adjacências (nota: dizer “etc” para divindades me pareceu um pouco demais, por isso, “adjacências”). É aquele peso na região do lóbulo central direito, mais ou menos na posição que o Neymar caiu pela última vez na Copa de 2018, lesão que durou pelo mesmo tempo da sua ida para o estaleiro.
Pois bem, passando por diversos médicos, tentei primeiro um clínico geral, que me orientou tomar remédios comuns da prateleira de promoções da farmácia:
- Isso passa já já, não se preocupe.
Lá ele!
Comprando quinze versões de dipirona e não tendo resolvido, fui ao neurologista que fez um checkup geral dos fluidos e magnetismos dentro do crânio:
- Veja aqui no Raio X, você tem dor de cabeça!
A genialidade do médico me deixou paralisado. Remédios para depressão para cortar as ligações de gordura dos neurônios – quem diria que eles precisavam de dietas!
Mais meses e nada de ter uma solução. Tive que passar para a medicina alternativa. Sem acreditar muito em homeopatia, mas já incrédulo com a Bayer, fui:
- Tome 20 bolinhas desta composição de erva cidreira com óleo de baleia!
Antes eu tinha um cérebro gordo, agora tinha um órgão que precisava de gordura de um animal da Noruega, vai entender.
A dor continuava, da forminha que ela se iniciou, se instalou e permaneceu. Descrente dos médicos e das suas formas retrógradas de tratar meu problema, não me restou alternativa senão ir para a cultura do Oriente. Sujeitei-me as agulhas da acupuntura.
Na salinha de recepção, eu mais dois senhores. O primeiro, de boina, bem velhinho, com bengala, barba por fazer e um semblante de sono, escutava o segundo paciente falar sobre as maravilhas que o procedimento lhe tinha feito:
- Jorge, ainda bem que veio. O doutor é incrível! Fazia mais de mês que eu não conseguia caminhar sem dor. No começo eu não acreditava muito nessa coisa de acupuntura, mas já na primeira sessão eu saí renovado. Hoje vou até a padaria sem sentir nada.
- Acho bom mesmo, Daniel. Estou com uma dor que só por Jesus para resolver.
Claro que me animei com o papo do senhorzinho que voltara para as suas idas matinais ao comércio. Esperei ser chamado e o médico abriu a porta. Na sua sala, algo de diferente: uma chuteira cheia de agulhas, um quadro com uma camisa do Zico autografada e várias referências de modelos de calçados ortopédicos. Imaginei que ele gostava bastante de futebol e de sapatos confortáveis e não me importei muito. Sem querer saber das minhas aventuras clínicas anteriores, logo fez uma leitura de baixo para cima do meu corpo:
- Olha, sua energia está muito confusa, ainda bem que veio. Vejo que seu rim esquerdo está com o caos para baixo, sua orelha direita não está equilibrada com o feng shui do seu corpo e este umbigo está distante do seu ponto de cisão. É óbvio que você nunca iria resolver nada! Vou ter que trabalhar muito sério neste seu caso.
Tudo bem, ele sabe do que faz, não à toa o velhinho voltou a andar. Na cama deitado, comecei a receber as agulhinhas. Não doía nem um pouco e parecia que algo bom ocorreria. Uma, duas, cinco, dez, vinte, cinquenta bichinhas. Depois de trinta minutos, minha dor não tinha passado nada, e estranhamente não entendia por que todas as agulhas estavam no meu pé esquerdo. “Doutor, ainda sinto dor de cabeça. Não era para ter acabado depois da sessão?”
- Dor de cabeça? Eu sou acupunturista especializado em membros inferiores. Você não tinha vindo para tratar de um joanete, Jorge?
Vivo e convivendo com a minha eterna enxaqueca, pelo menos caminho sem dor nos dedos do pé até a padaria.
Sendo murrinha, um luxo incompreendido
Quando a gente tem luxos próprios, nos convencem de vários pontos negativos: que ou estamos sendo fúteis, sem previsão de longo alcance, deselegantes com nossos herdeiros ou que isso faz parte de um processo de autoconhecimento, válido a todos os assalariados, como o Sr. Barsi ou alguma socialite destas que aparecem dia sim e dia também nos programas do SBT.
Contudo, no meu cotidiano, percebo a cada ida a farmácia do bairro que isto é uma simples questão de ótica. Seu Astrogildo – nome grotesco nos anos 2000, mas que já favoreceu atores, presidentes e embaixadores no passado recente de 1500 – é um dono de farmácia clássico que prova minha teoria.
Dos tempos da Pharmarcia, ele inova ao deixar tudo como está há anos, sendo uma prática pouco comum hoje, pois não é vintage, mas original: a poeira é da inauguração, os sabonetes ainda vêm em embalagens de papel com letras art nouveau, os vidros marrons espalhados em prateleiras, como a balança ainda preserva os ponteiros ao invés de qualquer número digital.
Nem sequer ousa ter atendentes, o farmacêutico é o único a estar presente, jogando em todas as posições. Com seu jaleco branco bordado pela turma de graduação de 1953, Seu Astrogildo balança, mas não cai, entre os três corredores e o balcão utilizando seus óculos do tempo em que ainda era datilógrafo, bigode português, careca polida e dentes bem amarelados pelo uso do cachimbo.
Digo a vocês como Seu Astrogildo é a pura síntese da riqueza.
Estando na drogaria, analiso os preços dos antiácidos, mas atento ao desenrolar da lábia do nosso herói com outro consumidor:
- Veja, um remédio não deve ser consumido na mesma proporção para dores diferentes, senhor. Observe meu sapato: ele está brilhante e sem sinal algum de defeito. Um camarada qualquer já teria jogado fora após um, dois anos, mas esta belezinha está comigo a trinta e sete anos e ainda vem outros trinta e sete (Seu Astrogildo, menos, Oscar Niemeyer já faleceu com muito menos...).
– Eu coloquei uma borracha de pneu na sola, passo diariamente talco no fundo, espalho sebo de carneiro no couro e de quebra no encontro com o calcanhar. Só nesse procedimento, matei três tipos de fungo, amaciei minha palma do pé e deixei o sapato mais confortável e bonito! Seu caso é igual, tome metade da aspirina, deixe a outra metade na escrivaninha e a mágica vai rolar!
Um maestro em ação. Como em uma sonata, guia a orquestra ao desfecho necessário sem abdicar da economia de esforço. Ele continua a sensibilizar uma outra consumidora:
- Para quê vai usar tanto xampu destas marcas importadas? Sabão feito de glicerina e soda lava da mesma forma e é bem mais natural.
Um senhor completamente careca, mas cheiroso, diferente de alguns ratos de academia com a mesma fisionomia de crânio e ausência capilar, tinha muita propriedade para falar sobre o cabelo feminino. Nosso mestre continua a dar bons exemplos, ajudando-nos a salvar o Planeta Terra, nos eximindo de achar que um componente orgânico somado a uma bomba possa fazer mal.
Ainda pouco convencida, nossa irmã que não precisava de um xampu e só queria uma pomada para queimaduras, continua a ouvir pacientemente aos ensinamentos do comandante da loja:
- Eu poderia vender de tudo aqui, viu: fraldas descartáveis, protetores solares finos, maquiagem e estas outras bugigangas que a juventude toda usa hoje em dia. Meu neto me fala muito sobre isso: “As pessoas não compram mais Minâncora, elas querem produtos aprovados por Holywood!”. Eu falo que quero vender o que funciona. Desde o Dutra eu não coloco meu dinheiro mais no banco e é isso que funciona!
Percebi que o Sr. Astrogildo está simplesmente em um paralelo que somente poucos gurus e produtores de chá estão, de apego controlado às conquistas diárias. Não interessa ao nosso personagem principal o lucro e os juros compostos que poderia ter recebido em quatro gerações, mas a permanência dos bons costumes.
Sem saber muito qual produto escolher, chamo-o para me ajudar:
- Se você parar de comer feijoada, não vai precisar mais tomar isso. Era o mesmo problema do meu Fusca, só parou de enguiçar quando eu deixei de colocar gasolina e comecei a vir a pé para o trabalho.
Convença-me que não estou atrasado
Minha ilustríssima esposa me falou que não tinha mais condições, eu precisava de ajuda. Férias, dias de descanso, encontros com a família, nossos filhos, tudo estava se perdendo em um emaranhado do vício... segundo ela. Pessoas que fumam carteiras e mais carteiras de cigarro, bebuns tropeçando no asfalto após mais um dia no bar, acumuladores vivendo às traças junto a souvenirs sem valor e eu, com meu suposto problema associado ao extremo de todas estas promiscuidades.
Tudo bem, não vou perder minha família por uma besteira, mas também não irei as claras em um reduto de problemáticos. Naquele dia saí de casa coberto por um casaco, óculos escuros e um chapéu panamá. Para mim, óbvio que os transeuntes nunca saberiam quem eu era, mas como uma diva do TikTok, tinha olhares contínuos se perguntando que guri era aquele vestido para o inverno europeu em pleno verão.
Chegando ao local, uma portinha estreita se abria para uma escada bastante íngreme, na qual nos apoiávamos nas paredes e cartazes expostos para não cair – inclusive, cartazes bem chamativos, com pessoas apontando para nossas fragilidades: “ANSIOSOS, PAREM AGORA!”. Após uma provação do Círio de Nazaré, um salão se apresenta com pouca luminosidade, cadeiras em círculo e uma senhora não muito jovem lendo uma revista – carinha de filósofa dos anos 70, mas ao mesmo tempo simpática.
- Bem-vindo, senhor. Nossa reunião começa daqui a 15 minutos, mas se quiser, pode se sentar e a gente conversa um pouco.
- Obrigado. Se puder começar antes eu agradeceria. Tenho algumas coisas do trabalho e o roteiro das férias dos meninos para terminar.
- Mas nossa reunião dura mais ou menos duas horas, já vai estar tarde quando o senhor sair daqui.
- Nossa, muito tempo! Eu tenho pelo menos dez entregas e dois relatórios para fazer.
- E tudo isso é para hoje?
- Tudo para o mês que vem. Mas Deus ajuda quem cedo madruga, não é mesmo?
- Calma, senhor, não há sentido em começar uma atividade do mês que vem agora. E está de férias com as crianças pelo que está me dizendo. Por que está trabalhando?
- Você não entende. O Marquinhos gosta de futebol, a Ana gosta de maquiagem, se eu não fizer o roteiro com dez meses de antecedência, colocando os horários de cada estádio, loja da Mary Kay, cruzeiro, trilha, vinícolas e a fuzarca toda, a gente não consegue fazer tudo no mesmo dia.
- Deixa eu ver se entendi: você vai viajar de férias e ter um dia inteiro para todas estas atividades?
- Isso! É meu único final de semana livre do ano, um achado! Pegamos um avião que chega às duas da tarde no destino, curtimos a cidade e voltamos meia noite para cá. Está tudo planejado.
- Bem se vê que está. Mas o senhor não acha que está um pouco adiantado com sua vida?
- Minha esposa acha que eu cronometro tudo, mas a vida é uma corrida com barreiras, senhora, você tem que passar cada uma, e quanto mais rápido, mais cedo chegará ao seu destino.
- E qual seria o destino?
- Certamente a aposentadoria.
- Ah, então o senhor quer trabalhar muito para poder se aposentar e finalmente descansar?
- Óbvio. Vou aposentar para curtir meus hobbies: desenhar, cozinhar, fotografar, jardinar, escrever, fazer móveis, criar galinhas, montar quebra-cabeças, jogar tênis, futebol, xadrez e praticar taekwondo.
- Pelo que estou vendo, o senhor tem ansiedade extrema, um caso bem crônico. Vamos fazer uma terapia de choque, ok? Hoje você vai ficar as duas horas conversando com a gente e depois vai para casa assistir um filme com sua família, deixando os seus relatórios para semana que vem, certo?
- Isso dá 3240 minutos até eu poder começar o relatório! Vou ter que adiantar o passeio com o cão Bisteca em 40 minutos, abastecer somente 22,3 litros o carro amanhã e cortar dois simulados do ENEM com a Ana, vai ser uma loucura!
- Calma, senhor, a sua filha já está entrando na faculdade? Por isso essa correria toda?
- Está se preparando. Ela está com sete anos, mas se não começar cedo não se consegue nada, não é mesmo?